Continuar com os planos? Mudar tudo? Como repensar a carreira na crise
Frase que ouvi muito nas últimas semanas: "ah, justo agora que eu estava com tudo planejado acontece isso!". Ou "isso veio bem quando eu finalmente tinha decidido o que fazer…". Ou ainda "agora que estava dando certo…".
É a vida, a gente realmente não controla todos os fatores que a envolvem. Nunca controlou.
Controlamos o que planejamos, como nos sentimos, como reagimos ao que acontece, mas não o que está fora da nossa esfera de ação. Sempre foi assim, a gente só não gosta de pensar nisso e admitir que não somos os donos do planeta. A pandemia veio nos lembrar da nossa parcela de controle numa dimensão toda nova.
Mas tomar consciência do nosso limitado poder de ação em termos MACRO também significa retomar a consciência do nosso grande poder de ação em termos MICRO, individuais.
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Isso não é pouco. O isolamento de cada um, por exemplo, mostra como cada indivíduo tem muito poder coletivamente; ideias que nasceram pequenas (de uma cabeça, afinal) também têm contribuído para grupos inteiros por meio de ciência, ações para assistir os mais carentes e por aí vai. Ou seja, um indivíduo em suas microdecisões pode impactar no macro.
A mesma lógica vale para a autogestão: pequenas providências podem impactar positivamente sua carreira mesmo em um momento tão delicado.
Em vez de se paralisar e vitimizar com o cenário (que não controla), entenda o que pode controlar e fazer hoje. Para ajudar no processo, proponho uma espécie de guia para repensar e refletir sobre seus caminhos profissionais no meio do furacão.
1) Considere a proporção 90/10 mesmo na crise
Quando falo da parcela que podemos ou não controlar, sempre lembro do Stephen Covey, que cunhou o Princípio 90/10. Segundo essa ideia, apenas não controlamos 10% do que acontece da nossa vida; os outros 90% estão nas nossas mãos, porque têm a ver com a forma como reagimos ao que nos acontece.
Embora em tempos de coronavírus os 10% nos soem bem mais do que 10, é possível aplicar a proporção considerando que, de fato, há uma boa parcela que nos cabe controlar — desde que já tenhamos condições mínimas para viver bem, comida e teto, evidentemente.
Ou seja, mesmo em um cenário incontrolável e indesejado, você pode controlar como reage a ele, o que faz com ele, como se coloca diante dele. Ou ao menos tentar. Todos os seus planos podem ter caído por terra e as decisões que havia tomado serem inúteis na atual conjuntura — isso você não controla.
Mas uma vez que parou de brigar com isso, pode sacudir a poeira e se perguntar:
- O que você pode controlar em meio a tudo isso?
- Como vai escolher reagir ao que está em curso?
- O que precisa mudar e está ao seu alcance?
- Há algo mais que possa fazer na prática para si e os outros?
São perguntas aparentemente simples, mas complexas porque envolvem repensar todas as certezas que tinha até então. Isso dói, provoca reações de negação, raiva, desânimo… E é bem aqui que pode tentar pensar nos seus 90/10: 90% da sua vida você pode controlar. A circunstância mudou drasticamente, mude agora a parte que lhe cabe, começando pelo que controla.
Comecei por aqui, porque essa lógica pode trazer um novo fôlego para a sua rotina e o seu repensar profissional na crise.
2) Tome consciência das suas angústias
Mesmo se abraçou o conceito e quer aplicar a proporção 90/10 agora, pode encontrar dificuldade se quiser tornar isso um processo decisório simplista, binário, mecânico.
Explico: escolher adotar a postura de controlar o que pode e não sofrer tanto pelo que não pode é salutar agora, mas não funciona como um mecanismo de "negacionismo emocional" nem social, de fingir que nada grave está acontecendo lá fora, que isso não afeta sua vida ou que não importa. É um processo complexo, com altos e baixos.
Sentimos uma série de novos e velhos medos, ansiedade, angústia, frustração, raiva, desilusão com tudo o que a Covid-19 acarreta. Essas emoções negativas fazem parte do crescimento emocional micro (meu e seu, como indivíduos) e macro (a sociedade, seus valores, seu ritmo, tudo sendo repensado).
Por isso, sentir tristeza e as demais emoções negativas agora é parte do processo.
Na prática, é sobre desenvolver uma consciência diária sobre a montanha russa emocional que a pandemia tem nos causado e então partir para os 90/10 do tópico 1. Porque até para combater as emoções ruins é mais eficiente estar ciente delas. Você pode escrever, conversar com alguém ou apenas refletir sobre seus sentimentos, só não fingir que não existem.
E então entenda exatamente:
- O que te aflige no momento? Liste tudo.
- De tudo isso, o que mais provoca ansiedade ou angústia ou te deixa triste?
- Qual a emoção negativa que mais tem experimentado nessa crise?
- Entendendo e aceitando essa emoção, como pode trazer mais emoções positivas para seus dias?
- O que mais está aprendendo com esse período difícil?
3) Pratique os 4 verbos: revisar, adiar, inovar, testar
Entendeu que é OK sentir medo agora? Sacou que tem uma boa parcela da sua vida que pode controlar e que ela pode ter um impacto maior do parece? É hora de agir, e por isso sugeri quatro verbos aqui, embora um deles seja adiar — já explico.
Agir não é se pressionar para ter uma solução "lacradora", ganhar muito mais dinheiro, "sair ganhando" dessa. Agir é não travar, não cair numa inércia que te faça se sentir pior consigo mesma, é fazer o que for possível (alô, proporção 90/10) e encontrar soluções ainda que minúsculas que te façam bem e/ou aos outros.
Entende? Não é pressão.
É ação consciente que contribui para a saúde mental enquanto trabalha ao menos um aspecto da carreira — e se você me lê há tempos já sabe que está tudo conectado, vida privada e profissional.
As 4 ações essenciais para a carreira na coronacrise, para começo de conversa, seriam:
- Revisar: pode chamar também de praticar o desapego. Tudo o que criou, planejou, começou a executar e conquistou pode ser superbacana, mas não necessariamente ser aplica mais, e não digo algo relacionado só ao miolo de crise que vivemos agora, mas às mudanças que experimentaremos nos próximos meses e anos depois de tudo isso. Tem muitas rupturas se desenhando. Saiamos do torpor e da negação e entremos numa toada de reflexão, esse verbo é sobre isso. Olhe para tudo o que pensou para si mesma e repense, abra a mente. O que ainda cabe? O que talvez precise de revisão?
- Adiar: um verbo que não fala tanto de ação, mas de pausa. Até para parar você precisa agir — a "não ação" é também uma ação, comunica algo, tem consequências às vezes boas, às vezes ruins. Qual o seu caso? O que, se não adiou, deveria? Fácil pensar quando é algo que pressupõe contato físico, mas te convido a pensar em inações necessárias para outros projetos. Uma ideia que parecia ótima e que se tornou desencaixada, por exemplo. Um novo caminho/negócio/plano B que ainda nem tinha sido iniciado. O que vai para a caixinha dos projetos adiados? Ou da desistência mesmo? Embora, por ora, não acho que seja o caso de cancelar definitivamente tanta coisa, deixar em estado de espera me parece mais prudente. Afinal, como já refletimos, o que depende do que não controlamos não pode ser inteiramente controlado…
- Inovar: entendido aqui como o ato que criar algo novo a partir de várias referências que já existem — ou seja não é copiar algo que viu e curtiu, é inventar uma coisa diferente, criativa, com base em uma série de bacanezas que consumiu e testou por aí. Sugestão: inovar em cima de si mesma, das suas próprias ideias e projetos. Recriar o que tem, agregando algum elemento novo, começar a se experimentar de um jeito diferente. O que seu pode ser recriado?
- Testar: o ato importantíssimo de colocar determinada ideia para jogo, mesmo sem ter certeza se quer aquilo mesmo ou se vai dar certo, certificando-se de que não haja grandes riscos ou perdas. Tem a ver com o conceito que ficou famoso pelas start-ups de MVP – Mínimo Produto Viável. Vamos aplicar o que queremos aplicar e parecer interessante desde que o risco por fazer isso seja controlável. Sempre recomendei isso, mas gosto especialmente da ideia do teste agora porque não carrega a carga nem a pretensão de um "superplano", de um "projeto completo". É apenas um teste! Mesmo com tantas dificuldades e diante de tantos temores, dá para fazer… e desistir, caso não seja um bom caminho.
4) Siga a sua curiosidade em vez de pirar no propósito
Já vi e falei dessa ideia antes, mas voltei a escutá-la num bate-papo com a Elizabeth Gilbert, a autora de Comer, Rezar, Amar, no perfil do TED. Ela falava sobre criatividade, lidar com a ansiedade por causa do coronavírus e tentar tocar os projetos diante de tantas incertezas.
Em determinado momento, comentou que deveríamos "seguir a curiosidade" em vez de pensar em um propósito maior, um conceito que, para ela, traz muita angústia — e que, pelo que já notei, pode trazer mesmo.
Como pensar em propósito agora sem ficar ansioso? Principalmente se estiver se sentindo paralisada e perdida? Difícil mesmo.
Ainda que propósito, conceitualmente, nada mais seja que usar seus talentos e habilidades para fazer algo por si mesmo, pelo outro ou pelo mundo. Não precisa ser algo disruptivo, mas apenas calcado em quem você é.
No entanto, se você não sente que encontrou seu propósito na vida ou não sabe adaptá-lo aos novos tempos porque, por exemplo, não enxerga aplicação dos seus talentos ao cenário atual, pode usar a tática que a autora propõe: siga sua curiosidade.
Começando talvez assim:
- O que te intriga ou instiga agora?
- Sobre o que está com vontade de aprender?
- Sobre o que tem vontade de ler?
- O que quer assistir ou se aprofundar?
- O que tem te motivado?
- Há alguma atividade da infância, dos 10 anos de idade, que anda com vontade de fazer?
Vá nessa linha e veja para onde ela te leva, certificando-se de se cuidar no caminho, física e emocionalmente.
5) Trocar ansiedade por autodesenvolvimento
O que chamo de plano de autodesenvolvimento pode ser entendido como um plano paralelo ao plano de carreira ou, ainda, como uma alternativa a ele. Se tudo mais estiver em suspenso, as decisões adiadas por tempo indeterminado, ainda assim será possível tentar evoluir e tornar esse processo rico e prazeroso.
Dentro do que é possível fazer agora certamente figura a possibilidade de criar um método próprio para o autodesenvolvimento, a prática do chamado lifelong learning.
Um planejamento que envolva os temas com os quais quer ter contato pela primeira vez, os assuntos que valem um olhar mais aprofundado ou contato diário, as searas profissionais e os hobbies com os quais deseja flertar.
Tudo isso num plano organizado para a sua evolução pessoal e profissional, que pode trazer ideias sobre novos caminhos a seguir — embora não tenha esse objetivo necessariamente.
O fato de ser um processo prazeroso, porém, não quer dizer que seja caótico. Sugiro que você organize o seu, usando os seguintes tópicos:
- Que temas mais tem vontade de aprender ou saber pela primeira vez?
- Em que temas gostaria de se aprofundar agora?
- Qual ou quais traria mais prazer para esse momento?
- O que pode agregar ao plano que te faria evoluir como ser humano? (temas, práticas etc)
- O que agregaria para evoluir especialmente na carreira que deseja? (ou que pode vir a ter)
- Que estudos pode começar a trazer para seu plano ainda neste mês?
- Por onde vai começar?
- Deseja trazer o plano mais para o viés profissional e deixá-lo menos pragmático?
- Como vai encaixar isso na rotina na prática? (inclua na agenda em pequenas fatias)
Todos os tópicos desde texto caminham juntos e funcionam melhor se você organizar a rotina o máximo possível para encaixar as atividades que escolheu por prazer ou para se aprofundar em algo profissional.
Lembre-se ainda de deixar espaço para o nada, todos os dias. Organização e disciplina são para te trazer mais liberdade e satisfação com a vida. Isso também contribui muito para autodesenvolvimento :-).
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